Durante o ano passado, tivemos a oportunidade de trazer para o Brasil a Dra. Priscila Caçola para palestrar na IV Conferência Nacional de Apraxia de Fala na Infância ocorrida em Setembro na cidade de São Paulo, e também em Dezembro quando ministrou cursos (básico e avançado) em Curitiba e em São Paulo.
Aproveitamos sua visita em Dezembro, para realizar essa entrevista com ela.
Estamos torcendo para que ela venha outras vezes para divulgar o tema do Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação (TDC).
1 – Qual a sua formação?
Eu fiz graduação em Educação Física e mestrado em Comportamento Motor na Universidade Federal do Paraná. Depois fiz doutorado em Neurociência Motora na Texas A&M University, nos Estados Unidos. Depois que terminei o doutorado em 2011, virei professora no Departmento de Kinesiology (traduz como Ciência do Movimento Humano) na University of Texas at Arlington. Atualmente, dou aula de Desenvolvimento e Aprendizagem Motora e faço pesquisa em Desenvolvimento Motor em crianças com desenvolvimento típico e atípico, focando no Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação (TDC).
2 – Qual o objetivo do curso ministrado por você e organizado pela Associação Brasileira de Apraxia de Fala na Infância – Abrapraxia?
O objetivo é disseminar a definição, critérios de diagnóstico, intervenção e pesquisas relacionadas ao Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação (TDC) aqui no Brasil.
Existem muitos estudos a respeito do Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação (TDC) e a prevalência é bem alta (2-7%) sendo frequentemente co-mórbido com outras condições (TDAH, Dislexia, TEA, e Transtornos de Linguagem e Fala, como a Apraxia de Fala na Infância).
Acredito que o curso, no geral, conseguiu esclarecer muitas das questões dos familiares e profissionais em relação ao diagnóstico e intervenção, especialmente em relação as evidências do que funciona para melhorar a habilidade motora de crianças com Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação (TDC).
3 – O que levou você a se especializar nessa área de atuação e conhecimento?
No doutorado, eu estudei muito o processo de desenvolvimento de percepção corporal em crianças com desenvolvimento típico. Já tinha vontade de aplicar os protocolos que criei em crianças com TDC, pois acreditava que elas mostrariam uma dificuldade com alguns processos de percepção corporal e imagem motora devido a algumas pesquisas.
Porém, só comecei quando criei o meu próprio laboratório, pois selecionar participantes é um processo rigoroso que demanda bastante tempo e interação com a comunidade. Quando comecei a avaliar as primeiras crianças com TDC e conversar com as famílias, ficou claro que não havia programas especializados para essas crianças, que muitos profissionais ainda não tinham conhecimento do assunto e que eu podia criar algo na área.
Fundei um programa de intervenção chamado Little Mavs Movement Academy e continuei a realizar pesquisas e trabalhar com alunos e a comunidade/famílias de crianças com o diagnóstico ou possível diagnóstico. E nunca mais parei – amo o que faço e conseguir integrar a comunidade e as famílias faz muita diferença pra mim como profissional e como pessoa.
4 – Qual o público alvo do curso?
Profissionais ligados à saúde, educação, e reabilitação/intervenção infantil: Terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicomotricistas, pedagogos, psicopedagogos, psicólogos, neuropsicólogos, professores de educação física, professores de educação especial, médicos – principalmente pediatras e neuropediatras – e familiares.
5 – Quais foram as cidades que já receberam o curso?
Eu ministrei cursos em duas cidades no ano de 2018: Curitiba e São Paulo.
Houve um curso básico em São Paulo em setembro, durante a Conferência Nacional de Apraxia de Fala na Infância e dois cursos (básico e avançado) tanto em Curitiba quanto em São Paulo em dezembro.
A resposta foi muito boa na Conferência Nacional de Apraxia de Fala na Infância, por isso retornei para ministrar mais cursos.
Acredito que foi o primeiro curso avançado de Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação (TDC) no Brasil. Muitas pessoas viajaram de longe para aprender sobre o TDC – acredito que de todas as regiões do Brasil. Conheci muitos profissionais dedicados e determinados a aprender, estudar, e difundir o TDC no país. Fiquei muito feliz com as respostas dos dois cursos.
6 – Como está a agenda para 2019?
Tenho muitos planos para 2019.
Em março, fui convidada para ministrar uma palestra sobre Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação (TDC) na escola para um seminário de transtornos do neurodesenvolvimento no John Hopkins, um hospital/centro de pesquisa muito famoso e pioneiro em estudos sobre o neurodesenvolvimento.
Em maio vou ministrar uma aula de Desenvolvimento Motor para alunos americanos da universidade que trabalho em Curitiba e Florianópolis. Também vou ao Congresso Internacional de Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação (TDC) na Finlândia em junho.
Depois disso, pretendo voltar para a Conferência de Apraxia da Fala na Infância e para ministrar outros cursos pelo Brasil, mas a agenda ainda não está fechada.
Estou adorando poder ensinar e aprender com profissionais e familiares brasileiros – poder voltar ao meu país e contribuir com o pouco que eu sei. Foi um sonho realizado!
7 – Na sua avaliação, qual ou quais seriam os caminhos a serem trilhados para que uma criança com Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação (TDC) atinja o seu melhor potencial?
Crianças com TDC precisam de ajuda para desempenhar atividades da vida diária e atividades que são obrigatórias para o desempenho escolar. Então, adaptações/mudanças nas tarefas e no ambiente que ajudem as crianças a desempenhar tarefas sem problemas (como vestir-se, comer, escrever e participar de atividades), é necessário.
Muito se fala sobre intervenções para melhorar a capacidade motora das crianças. Sou a favor dessas intervenções, desde que não sejam as únicas – pesquisas mostram que intervenções que são direcionadas a objetivos específicos e focando nas mudanças e tarefa são mais eficientes.
Esses caminhos levam a criança a se sentir melhor e a conseguir fazer independentemente o que precisa. Também acredito que fazer as mudanças necessárias ajuda a criança a se sentir entendida e modifica as expectativas ao redor dela – ao invés dela ter que melhorar a sua capacidade, somente, o ambiente foi modificado pra ela.
Tudo que possa melhorar a auto-estima, participação, qualidade de vida e gosto pela atividade motora e física vai fazer a criança atingir o seu melhor potencial – estes devem ser o foco de qualquer terapia para crianças com TDC.
8 – O termo TDC ainda é novo no Brasil, qual a sua origem? O que diferencia Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação (TDC) de Apraxia da Fala na Infância?
A verdade é que o termo por ele mesmo não é novo, nem no Brasil nem fora. O que acontece é que o termo ficou relativamente restrito à pesquisa, apesar de ser um diagnóstico formal no DSM.
Mas as dificuldades vistas no TDC já são conhecidas há bastante tempo, porém, são chamadas muitas vezes de Apraxia Global ou Dispraxia (Global).
O termo Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação (TDC) foi originado de um consenso em Londres em 1996, onde pesquisadores da área se reuniram para definir esse distúrbio, unificar as nomenclaturas e definir os critérios de diagnóstico. Essa formalidade ajudou muito com o reconhecimento, estudos, e intervenção específica para o TDC.
O Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação (TDC) é bem diferente da Apraxia da Fala na Infância. Entretanto, esses distúrbios podem ser co-mórbidos.
O TDC é definido por atrasos no desenvolvimento de habilidades motoras e dificuldade em coordenar movimentos, o que resulta em uma incapacidade de realizar habilidades cotidianas comuns (como vestir-se de forma rápida e precisa; cortar com o garfo e faca, aprender esportes novos, escrever e recortar com rapidez e precisão, etc). A Apraxia da Fala na Infância é específica para o controle da fala. Eu acredito que muitas crianças com Apraxia da Fala também tenham dificuldades motoras globais, que podem ser Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação (TDC).
9 – Quais as principais diferenças na busca por diagnóstico entre Eua e Brasil?
Nos Eua, existe um programa chamado Early Childhood Intervention (ECI) que atende crianças de até 3 anos com atrasos ou dificuldades no desenvolvimento. Esse programa foca nos sintomas de comportamentos mais do que no diagnóstico.
Existe outro programa para crianças mais velhas, relacionados aos distritos escolares, chamado de Preschool Program for Childhood Disability (PPCD), e existe uma transição do ECI para o PPCD, pois muitos distúrbios exigem adaptações para as crianças no ambiente escolar e/ou a matrícula na educação especial, que geralmente são salas de aulas dentro de escolas regulares.
Para o diagnóstico, existem alguns pediatras do desenvolvimento que são especializados em distúrbios e transtornos do neurodesenvolvimento.
Também existem vários centros de referência em hospitais/clínicas infantis, nos quais pais podem marcar avaliações globais para os filhos. Muitos pediatras também encaminham para esses centros. Geralmente existe um tempo de espera para a avaliação, mas vale a pena – as crianças passam por vários profissionais, o que facilita um diagnóstico.
10 – Como é o incentivo para as pesquisas sobre síndromes e distúrbios nos Eua?
Existe um grande incentivo para pesquisas, porém, elas estão restritas à distúrbios mais conhecidos (como o TEA) e as origens genéticas de distúrbios. Também existe mais financiamento e incentivo relacionado às pesquisas com tratamentos farmacêuticos e ativação neural.
Entretanto, o incentivo é muito pequeno quando comparado a doenças cardiovasculares, câncer e outras doenças associadas ao envelhecimento. É preciso mais incentivo a pesquisa que foque além dos marcos genéticos e neurais, mas que sejam direcionadas diretamente a melhora da qualidade de vida das crianças e de suas famílias.
Sou imensamente grata à Associação Brasileira de Apraxia da Fala na Infância – ABRAPRAXIA – por abraçar o Transtorno do Desenvolvimento da Coordenação (TDC) e me trazer para o Brasil.
Nós sabemos que diagnósticos são um grupo de dificuldades numa área só, mas que distúrbios do neurodesenvolvimento geralmente são co-mórbidos e requerem avaliação e intervenção multidisciplinar. Disseminar o conhecimento desses distúrbios com profissionais qualificados é muito importante e a Associação Brasileira de Apraxia da Fala na Infância – ABRAPRAXIA – faz isso com maestria.
Também acho que mães não são qualificadas nas áreas do desenvolvimento infantil, porém, são especialistas nos seus filhos – e podem ajudar muito os profissionais da área. Os profissionais podem estudar, ensinar e melhorar os processos do distúrbio, mas a mães (e pais!) são as que mudam a realidade dos distúrbios e das crianças. A Abrapraxia também faz isso muito bem – aprendi muito com a associação e com as mães e fico extremamente orgulhosa de ver uma associação como esta no Brasil.