Entrevista Dr. Alysson Muotri para ABRAPRAXIA

Associação Brasileira de Apraxia da Fala Na Infância e Adolescência

Entrevista Dr. Alysson Muotri para ABRAPRAXIA

Trabalhando na vanguarda da genética e da neurociência, Dr. Alysson Muotri é o biólogo brasileiro que publica o maior número de artigos científicos de impacto atualmente.

Biólogo molecular formado pela Unicamp com doutorado em genética pela USP, Pós-doutorado em neurociência e células-tronco pelo Instituto Salk de pesquisas biológicas (EUA). Hoje, é professor da Faculdade de Medicina da Universidade de San Diego – Califórnia, e um dos mais respeitados cientistas no tema autismo a nível mundial.

É também diretor do Programa de Células-Tronco da UCSD. Em seu Laboratório, consegue replicar as etapas iniciais do sistema nervoso humano usando organóides cerebrais (“minicérebros”), derivados de células-tronco. O trabalho com minicérebros é um grande diferencial, segundo ele, pois o modelo humano parece ser mais realista para estudos do Transtorno do Espectro Autista.

Existem outros laboratórios no mundo trabalhando com minicérebros e cada dia aparecem outros. De fato, a tecnologia está virando a nova moda na pesquisa biomédica.

Conversamos com ele a respeito de seu trabalho, as perspetivas de tratamento que podem surgir a partir da identificação dos marcadores genéticos até agora identificados e também a importância das famílias no apoio às pesquisas.

Em nossa V Conferência que acontecerá em São Paulo nos dias 6, 7 e 8 de setembro  trataremos sobre “Pesquisas genéticas e Apraxia de Fala na Infância”, inclusive com a participação do neurologista americano Tyler Piersen. Clique aqui para ver nosso programa.

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  1. Você realizou a graduação e Doutorado no Brasil, o que levou você para os Estados Unidos?

Eu fiz a minha graduação e doutorado no Brasil. Graduação em ciências biológicas pela UNICAMP, o doutorado em genética humana na USP em São Paulo e depois fui fazer o pós-doutoramento em células-tronco em neurociência já na Califórnia. Desde então eu decidi ficar por aqui e há dez anos eu montei meu próprio laboratório onde a gente desenvolve pesquisas para entender as síndromes do neurodesenvolvimento, a evolução do cérebro humano entre outros assuntos. Eu vim para os Estados Unidos porque é o lugar ou o país que dá mais atenção para cientista. Para me desenvolver como o cientista eu precisaria estar no melhor ambiente possível, e o melhor ambiente possível é os Estados Unidos. Mesmo dentro dos Estados Unidos existe uma série lugares que são melhores ou piores para trabalhar. A Califórnia foi o que eu mais me identifiquei, porque ela une dois fatores que eu considero imprescindíveis para o avanço da ciência: uma é a colaboração e o outro é a ousadia. A Califórnia tem essas duas características que é muito mais forte do que qualquer outro lugar dos Estados Unidos. Foi por aqui que eu decidi ficar e não me arrependo. Está indo tudo muito bem, porque minha personalidade acaba sendo parecida com isso.

  1. Você é um dos fundadores da TISMOO. O que é a TISMOO e qual a diferença da proposta de trabalho para outros laboratórios de diagnóstico genético?

Sou um fundador da TISMOO junto com outros sócios. Nós somos profissionais de saúde, então tem médicos, advogado, geneticista, pessoal da computação e eu estou entrando como neurocientista. A proposta da TISMOOO surge de uma frustração na criação de um centro de excelência do autismo via o governo. Na época era o governo Dilma que a gente tentou uma aproximação para criar esse centro de excelência em autismo. Não houve o interesse do governo. Decidimos fazer através da iniciativa privada. Obviamente a dimensão que isso teria não seria a mesma, porque nós éramos limitados no quanto que a gente poderia se esforçar para fazer isso. Então a gente decidiu começar pela primeira parte que a parte genética, que é parte fundamental do autismo.  A proposta de trabalho do autismo é usar a genética como uma forma de guiar o tratamento. A gente se diferencia de outros laboratórios porque a gente não faz apenas o sequenciamento genético. Mas a gente faz o que a gente chama de medicina personalizada. Ou seja, olhar para esse genoma e, a partir dessa informação, buscar guiar as pessoas na melhor forma possível para tratamentos, que sejam mais específicos para aquele subtipo de autismo. No futuro a TISMOO quer dar um outro passo, que é o passo do tratamento em si, principalmente para aqueles que não tem um tratamento obvio hoje em dia. A ideia é fazer que a gente chama de minicérebros em laboratório, carregando o genoma de pessoas autistas e usar esses minicérebros como avatares para o tratamento, para descoberta de novas drogas. A TISMOO recentemente conseguiu uma locação, estaremos montando um laboratório em Portugal para começar a dar andamento a esse tipo de iniciativa. Tudo isso é muito desafiador, você tem um grupo de pessoas espalhadas pelo mundo. Eu em San Diego, o pessoal do Brasil, o Gadía na Flórida que decidiram doar seu tempo para fazer isso. Então a TISMOO não tem uma ambição de deixar ninguém rico. A gente não tem o menor interesse financeiro. É uma empresa social. A gente quer que essa seja uma semente que dê origem a um centro de excelência no Brasil. É um trabalho de formiguinha. Estamos começando bem devagar, mas nós somos bem ambiciosos. Nós queremos colocar o Brasil no mapa no tratamento do autismo, através de colaborações internacionais. Esse é o nosso objetivo.

  1. Nos últimos 18 meses, aproximadamente, estamos acompanhando um número considerável de famílias com achados genéticos nos exames realizados por seus filhos. Você acha que o aumento dos diagnósticos genéticos ocorrem por conta do maior número de marcadores genéticos ou simplesmente porque esses exames passaram a ser mais solicitados pelos médicos?

Na verdade, acho que não é nem um, nem outro. Eu acho que a razão de que cresce o número é porque o exame genético passa, ou torna-se mais acessível, conforme o passar dos anos. Como toda a tecnologia de ponta, no começo ela surge muito cara. O primeiro sequenciamento genético foi feito no começo dos anos 2000, custou mais de 100 milhões de dólares para fazer um sequenciamento genético. Hoje a gente está numa faixa aí de sete mil dólares, está caindo dramaticamente. A cada dois anos a gente vê que tem uma queda no preço. Eu acho que é isso que atrai as pessoas. Ainda acho que existe uma resistência de algumas famílias, de alguns médicos para o exame genético, mas acho que com o tempo isso tende a diminuir. Na verdade, a iniciativa que existe da Pediatria, por exemplo, aqui na Califórnia é de que todo autista tenha direito ao seu sequenciamento genético, porque a gente acredita que isso vai ser um benefício no tratamento, na escolha do tratamento de cada autista. Acho que isso vai virar assim, como você faz um exame de sangue, todo mundo vai ter o seu exame genético, e vai cair bastante o preço.

  1. Os diversos tipos de autismo podem ser explicados por questões genéticas? Os diagnósticos genéticos que vem acontecendo são os subtipos de autismo?

Sim. A maior parte da estratificação do autismo deve surgir através do sequenciamento genético. A gente vai identificando quais são os genes ou mutações ou alterações cromossômicas que vão levando aos diferentes subtipos genéticos. Durante os últimos anos é isso que vem acontecendo. Por exemplo, pessoas que hoje são diagnosticadas com a síndrome de Rett, antigamente eram classificadas com autismo. A mesma coisa para a síndrome do X- Frágil. Conforme a gente vai entendendo a biologia e a causa genética, a gente vai isolando esses grupos, por que eles se assemelham mais clinicamente e nós vamos eliminando-os do espectro ou denominando de uma outra forma. Isso é importante não só para o estudo genético, mas também para medicina, para poder caracterizar melhor como que é o desenvolvimento desses subtipos. Então acho que vai vir sim, essa especificação virá através da genética. Por isso é importante que todo mundo tenha e quanto mais gente tem, melhor para todo mundo.

    1. Quais as possibilidades de avanço nessa área de pesquisa a fim de esclarecimentos especialmente de familiares?

Conforme a gente vai sequenciando mais pessoas, a gente vai aprendendo mais. O tanto de conhecimento que a gente gera está diretamente relacionado ao número de pessoas que são sequenciadas. Aquela história do ovo e da galinha. É por isso que a tecnologia baixando o preço torna-se mais acessível e a gente consegue sequenciar mais pessoas. Acho que vai vir daí, do número de autistas que são sequenciados, e com isso a gente vai entendendo mais o que está acontecendo.

  1. Você acredita que a nomenclatura hoje utilizada (espectro do autismo) vai deixar de fazer sentido quando a Síndrome Genética passar a estar definida na maior parte dos casos?

Existe uma coisa que unifica todas essas síndromes que são os três pilares do autismo: a sociabilidade, a deficiência na comunicação e o comportamento repetitivo estereotipado. Elas ainda têm algo em comum. O nome vai ser muito mais relacionado a um sintoma do que uma categoria. Muito possivelmente as síndromes vão ser chamadas pelo nome do gene, dos genes que caracterizam cada uma delas.

  1. A Apraxia de Fala na Infância pode ser considerada uma comorbidade comum nas diversas Síndromes Genéticas estudadas pela TISMOO? Caso positivo, isso pode auxiliar na indicação do tratamento do paciente?

Sim. Na verdade, é bem comum no espectro autista. Isso pode sim ser uma indicação para tratamento do paciente. É um aspecto importante, então já se recomenda uma série de terapias baseado nessa observação. Acho que é uma comorbidade bem significativa na verdade.

  1. De que forma as células-tronco auxiliam nas pesquisas em seu laboratório?

Nós usamos as células-tronco como modelo para o desenvolvimento do cérebro. A gente consegue recapitular o desenvolvimento neural através da reprogramação celular de células do autista e a criação do que nós chamamos de minicérebros ou organoides cerebrais. A partir daí a gente compara com o grupo neurotípico e observa as variantes. Como essas variantes genéticas causam problemas celulares ou de comportamentos de networks. A ideia toda é usar esse modelo não só para identificar o impacto de cada uma dessas gerações, de cada uma dessas variantes genéticas, mas também buscar tratamentos farmacológicos ou terapia gênica que poderia corrigir esses defeitos usando esse modelo. Então modelo bem significativo, especialmente porque outros modelos, como o modelo animal, não funcionam tão bem assim para síndrome do espectro do autismo.

  1. A pesquisa com células-tronco pode ajudar no desenvolvimento de novos medicamentos? De que forma?

Como eu falei, elas, na verdade, são utilizadas como modelo. Principalmente no tratamento de drogas, no tratamento farmacológico ou na terapia gênica. Ou seja, a gente consegue fazer o que a gente chama de prova de conceito. Revertendo essas mutações, usando ferramentas de edição genética e vetores virais, e quem sabe partir para isso em um ensaio clínico. Essa é a ambição que nós temos para cada uma dessas síndromes.

  1. Quais as perspectivas de tratamento para as diversas síndromes genéticas?

Dependendo do gene, a ciência avançou mais do que outros. Então depende muito de qual é o tipo de gene. Tem alguns genes que, por exemplo, já foram implicados em outras síndromes ou mesmo em câncer. Onde nós já conhecemos bastante dessas vias genéticas e já até identificamos drogas que podem atuar nessas vias fazendo uma compensação. É óbvio que essas síndromes causadas por esses genes, nessas vias já conhecidas, vão andar muito mais rápido. Existem uma série de genes novos sendo implicados no autismo e nós nem sabemos ainda como que esses genes funcionam, qual é a função deles na célula. Obviamente esses estão mais para trás. Então dependendo da característica genética o tratamento, a perspectiva do tratamento em ensaios clínicos, estão mais para frente ou mais para trás.

  1. Há alguma perspectiva para que esse tipo de tratamento esteja acessível à população em geral, nos próximos anos?

Depende do caso. Em alguns casos a gente já tem algumas drogas que sejam já aprovadas pelo FDA (Food and Drug Administration), que são drogas bem acessíveis. Então possivelmente não vai ser um tratamento muito caro. Um grande exemplo disso é o que a gente fez em 2016, 2017 onde a gente identificou uma alteração genética em um gene chamado TRPC6. Pessoas que tem essa alteração genética podem se beneficiar de tomar o chá da Erva de São João, porque nesse chá contém o princípio ativo que compensa a falta da cópia mutada de um desses genes. Um tratamento relativamente barato. Basta você descobrir que você tem essa alteração para se beneficiar desse tratamento. Obviamente se você não fizer o sequenciamento genético, você nunca vai saber que você tem esse gene e não vai poder se beneficiar desse tratamento que é acessível. Esse é um exemplo bem clássico de como um medicamento já aprovado que, na verdade, é um extrato de uma planta pode ajudar num subtipo de autismo. Nesse caso não acredito que seja uma cura, mas com certeza deve trazer um impacto positivo na vida da pessoa.

  1. O canabidiol (canabis) está entre as drogas que serão testadas nos minicérebros?

Sim. Nós estamos fazendo um ensaio clínico usando CBD em autismo e os pacientes que vão ser tratados, vão ter os minicérebros em paralelos também sendo estudados no meu laboratório. A ideia é entender como é que o CBD impacta o cérebro desses indivíduos.  A gente espera conseguir correlacionar os achados clínicos com os achados em laboratório. Isso vai abrir uma perspectiva fascinante de poder prever quais medicamentos serão mais específicos para cada indivíduo. É o que a gente chama de medicina personalizada.

  1. Quais as contribuições para a ciência efetivamente já realizadas pelo seu laboratório?

São anos de pesquisa e ficaria anos falando dessas contribuições, mas acho que se eu pudesse ressaltar algumas delas seria, por exemplo, o mosaico cerebral. Eu descobri que os neurônios não são geneticamente idênticos, mas eles acumulam mutações somáticas durante a vida. Isso pode ter implicações inclusive para o autismo. Essa é uma das grandes contribuições que a gente fez para a ciência. A outra foi de desenvolver esse modelo de minicérebro. E mais importante ainda, eu diria, não só desenvolver o modelo, mas mostrar os defeitos em neurônios derivados de pessoas no espectro do autismo e, talvez mais importante ainda, o fato que ele que seja reversível. Isso abriu uma perspectiva para estudo nessa área sem precedentes, porque antigamente acreditava-se que autismo não teria cura ou tratamento. A partir dessas observações a coisa já muda. Têm diversos laboratórios inclusive de biotecnologia e farmacologia que se dedicam a buscar drogas para autismo porque sabem que é possível. Essa é uma das grandes contribuições.

  1. De que forma pais e familiares podem auxiliar nas pesquisas científicas que vem acontecendo, seja nos EUA e no Brasil?

Acho que tem duas formas de fazer isso. A primeira é descobrir qual é o gene alterado em cada família e agrupar essas famílias. Uma vez que elas se agrupam elas se tornam mais fortes e mais presentes para poder auxiliar nas pesquisas. Como é que elas podem auxiliar nas pesquisas? Desde buscando fundos para suportar essas pesquisas científicas, que muitas vezes acabam não acontecendo por falta de verba, porque na maior parte das vezes o autismo é um grupo de doenças raras, então existe pouco interesse do Estado em dar suporte a pesquisas para doenças raras. Quem tem que fazer isso infelizmente está na mão dos familiares. Como é que eles fazem isso? Ora, imitando como as famílias americanas fazem. Elas criam, elas contratam, vão atrás de celebridades para arrecadar fundos. Contratam rede de TV para fazer iniciativas para arrecadar fundos para pesquisa e por aí vai. São diversas atividades sociais com intuito de educar e também buscar financiamento para pesquisa. É assim que o laboratório tem sobrevivido, graças ao perfil mais arrojado, mais otimista e mais generoso das famílias americanas que se dedicam a fazer esse tipo de coisa. Isso no Brasil ainda não acontece. As pessoas não tem essa postura da doação. Então é um pouco mais difícil de fazer isso no Brasil, mas eu já vejo diversas famílias brasileiras se agrupando e se associando às associações americanas e fazendo isso através das associações americanas, o que é muito legal de se ver.